segunda-feira, 29 de maio de 2006

Último dia!

Naquela manhã, sentiu vontade de dormir um pouco mais. Estava cansado,
tinha deitado muito tarde e não havia dormido bem. Mas logo abandonou a
idéia de ficar um pouco mais na cama, e levantou-se, pensando nas muitas
coisas que precisava fazer na empresa.

Lavou o rosto e fez a barba correndo, automaticamente. Não prestou
atenção no rosto cansado e nem nas olheiras escuras, resultado de noites
maldormidas.

Engoliu o café e saiu resmungando baixinho um "bom dia", sem muita
convicção. Desprezou os lábios da esposa, que se ofereciam para um beijo
de despedida. Não entendia porque ela se queixava tanto da ausência dele
e vivia pedindo mais tempo para ficarem juntos.

Ele estava conseguindo manter o elevado padrão de vida da família, não
estava? Isso não bastava?

Entrou no carro e saiu. Pegou o telefone celular e ligou para sua filha. Sorriu
quando soube que o netinho havia dado os primeiros passos. Ficou sério
quando a filha lembrou-o de que há tempos ele não aparecia para ver o
neto e o convidou para almoçar.

Ele relutou bastante: sabia que iria gostar muito de estar com o neto. Mas
não podia, naquele dia, sair da empresa. Quem sabe no próximo final de
semana?

Chegou à empresa e mal cumprimentou as pessoas. A agenda estava lotada,
e era muito importante começar logo a atender seus compromissos, pois
tinha plena convicção de que pessoas de valor não desperdiçam seu tempo
com conversa fiada.

Na hora do almoço, pediu à secretária para trazer um sanduíche e um
refrigerante diet. O colesterol estava alto, precisava fazer um check-up,
mas isso ficaria para o mês seguinte. Começou a comer enquanto lia alguns
papéis que usaria na reunião da tarde. Nem observou que tipo de lanche
estava mastigando.

Enquanto relacionava os telefonemas que deveria dar, sentiu um pouco de
tontura, a vista embaçou. Lembrou-se do médico advertindo-o, alguns dias
antes, quando tivera os mesmos sintomas, de que estava na hora de fazer
um check-up.

Mas ele logo concluiu que era um mal estar passageiro, que seria resolvido
com um café forte, sem açúcar. Terminado o "almoço", escovou os dentes
e voltou ao trabalho. "a vida continua", pensou.

Saiu para uma reunião já meio atrasado. Não esperou o elevador. Desceu
as escadas pulando os degraus de dois em dois. Entrou no carro, deu a
partida e, quando ia engatar a marcha, sentiu de novo o mal estar e agora
com uma dor forte no peito.

O ar começou a faltar... A dor foi aumentando... O carro desapareceu...
Os outros carros também... Os pilares, as paredes, a porta, a claridade da
rua, as luzes do teto, tudo foi sumindo diante de seus olhos, ao mesmo
tempo que surgiam cenas de um filme que ele conhecia bem.

A esposa, o netinho, a filha e, uma após outra, todas as pessoas de que
mais gostava. Por que mesmo não tinha ido almoçar com a filha e o neto?
O que a esposa tinha dito à porta de casa quando ele estava saindo, hoje
de manhã?

A dor no peito persistia, mas agora outra dor começava a perturbá-lo:
a do arrependimento. Ele não conseguia distinguir qual era a mais forte: a
da coronária entupida ou a de sua alma rasgando.

Escutou o barulho de alguma coisa quebrando dentro de seu coração, e de
seus olhos escorreram lágrimas silenciosas... Queria viver, queria ter mais
uma chance, queria voltar para casa e beijar a esposa, abraçar a filha,
brincar com o neto...

Queria... Queria... Mas não havia mais tempo.


"Aquele era seu último dia de vida, mas ele ainda não sabia disso."


(Para aqueles que tiveram contato com o Dr. Bráulio, que nos foi levado de forma tão inesperada, ontem 28/05/06... assim é a vida, imprevisível e inesperada e imutável em muitas de suas leis! A morte é uma delas!)